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«Frémito das imagens que acordam»
Robert Bresson
«The space between all things. That’s what I’m attracted to»
Jim Jarmusch
(a palavra e o gesto) William S. Burroughs disse, faz já alguns anos, que a palavra escrita funcionou, na sua origem, como um vírus que instaurou a palavra falada. Observava também que o desenvolvimento da palavra falada (posterior à palavra escrita) e do conhecimento, conduziu o homem a um nível tal de civilização e de institucionalização, que acabou por contaminar todas as relações sociais e políticas que desde então floresceram. Com esta tese, Burroughs abria uma leve ferida na origem da comunicação, e no destino do homem como prisioneiro de si mesmo e das suas descobertas. A linguagem foi a primeira máquina de controlo.
A filmografia de Robert Bresson é feita de palavras. Mas as palavras, no contexto bressoniano, encontram-se no mesmo plano que os gestos. E os gestos reais, físicos, são gestos fragmentados, polinizadores da imagem. São eles que conduzem as acções e as palavras entre as imagens. O cinema moderno abriu zonas intersticiais, onde antes existia a obsessão da continuidade, da transparência, deu lugar a um território da deriva, da ambiguidade, de uma certa estranheza dentro do quotidiano (Viagem a Itália de Rossellini e O Eclipse de Antonioni, por exemplo). Se o cinema se constrói através da descontinuidade, ocultá-la seria então um erro. Por isso, para Bresson, a fragmentação era, mais do que uma necessidade, um método de ir ao encontro, de nomear uma acção, de conjugar gestos, palavras e silêncios, em definitivo era aquilo a que ele chamava cinematógrafo (em oposição ao cinema). Uma conjugação aberta ao azar, ao mistério que implica colocar uma câmara num lugar com pessoas (ou até sem elas) e gravar. Antes, muito antes, a palavra era uma imagem, e a palavra era Deus. Por isso, a palavra representa uma relação antiga que se perdeu com o mundo moderno (hoje a palavra é, também ela, sinónimo de mercadoria, efémera e desespiritualizada). Por isso a palavra, como tal, como fonte de poesia e de conhecimento, é muito importante para cineastas como Bresson, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Chris Marker ou Harun Farocki.
(forma) Julio Cortázar falava do estilo como um veículo, um meio preciso, para a expressão. A marcada estilística em cineastas como Robert Bresson e Michael Haneke encontramo-la no modo de gerir as emoções retidas na dialéctica entre movimento e imobilidade, e no tratamento de questões de fundo através da exactidão da forma. Haneke, em alguns dos seus filmes, desenvolve uma síntese perfeita entre estilismo cinematográfico, com um fundo sócio-político e emocional, violentamente radical. Tal como os últimos filmes de Robert Bresson – Le diable probablement (1977) ou L’argent (1983) – eram tremendamente políticos, sem contudo abandonar a forma, muito pelo contrario, houve um apuramento levado ao extremo. Os enquadramentos de Le diable probablement são de uma claustrofobia milimetrizada. Os gestos e as suas ligações, nos filmes de Bresson, vão-se completando sem se completar, roçam o casual e o quotidiano de uma forma sobrenatural, uma espécie de segunda pele dentro do filme. O verbo por si só não contém a expressão, unicamente o gesto pode recriar uma emoção contida, por isso as palavras saem da boca de autómatos inexpressivos (a expressividade está no texto através da pessoa, e não na pessoa em si), como um monólogo interior, e os gestos emanam de um silêncio exterior que perturba. Em Haneke, a violência das imagens contrasta com a imutabilidade bressoniana das personagens.
(invisibilidade) Tal como em Bresson, no cinema de Sergei Paradjanov existe uma condensação dos gestos. Os objectos e os gestos, são traduzidos pelo ritmo, ou então, pela fixidez da câmara. Os objectos, os gestos, a matéria, a morte, são o reflexo vivo de um interior em constante evolução, mas que também gera sedimentos, restos, impurezas, de uma transformação inevitável. Uma imagem que sobreviva ao pensamento. Uma imagem que seja uma ideia, uma reminiscência, anacrónica e transcultural. Só a arte é capaz de revelar o invisível perante a ausência.
(paraíso) O cinema de Jarmusch, de Kiarostami, de Kaurismäki, de Bresson, …, pertencem todos à história e ao conceito do próprio cinema, e de um modo mais alargado, à arte, e a uma certa ideia de cultura (que tem uma dimensão quase mágica). Antes de ser paraíso, o cinema é inferno, luz e calor que consome a sua própria matéria, a sua imagem feita verdade (gravação). Mais estranho que o paraíso…
(travelling) É o dispositivo que vai deixando para trás… A fluente impermanência das formas no decurso do tempo. O presente é um território transitável.
(plano) Tudo aquilo que está lá, e tudo aquilo que não está. Aquilo que deve estar, ou que deveria estar. Aquilo que é mostrado também insinua o que esconde.
(espaço e tempo) A relva do Blow Up é o espaço-entre: entre o espectador e o objecto observado, entre o que está no campo e o que está fora de campo. No fundo é esse o espaço do cinema: situar o que está entre as coisas, as pessoas, os sentimentos. Um espaço que também supõe um tempo. Situar o abstracto é estimular o movimento, o ritmo que se manifesta por meio do plano, criando uma unidade. No começo o cinema era cinematógrafo. Antes de ser movimento era escrita do movimento. Ideia de cinema. Ideia de movimento. Ideias estáticas em movimento. É nessa contradição e tensão essenciais, entre o estático e o cinemático, que se encontra o cinematográfico.
(duração) O cinema é duração, fluxo e tempo, luz e escuridão. O cinema não são histórias, são imagens presas pelo tempo. Uma ideia de duração, inerente ao cinema, que já estava presente nos planos fixos dos irmãos Lumière, só que para eles o cinema era uma invenção sem futuro, apenas uma ciência (Edison também não acreditava no cinema como uma potencial industria). Com Andy Warhol o filme correspondia à letra com a duração (Empire); e o que está fora de campo, tem uma continuidade imaginária ou autêntica? (Blow Job). Essa continuidade essencial do filme na mente do espectador – um processo mental que corresponde à própria natureza do cinema, como já o vira Hugo Münsterberg – foi, e continua a ser, um dos temas modernos por excelência, sobretudo porque estabelece espaços de contingência, de indeterminação, que o espectador tratará de resolver por si mesmo.
(pravda) Dziga Vertov provou que a câmara tinha mais poder que o olho, ou que as próprias palavras. Mas o real por si mesmo, isto é, autónomo, não existe. O que existe é um olhar sobre o real, e que difere de pessoa para pessoa. Há sempre uma escolha, um ponto de vista. Até Jean Vigo o chamou ponto de vista documentado, que é bem diferente de um documentário (um conjunto de factos visuais, sonoros e textuais, sobre um determinado assunto). O documentário não existe, só existem documentos. Também as primeiras fotografias, realizadas por J. N. Niépce na década de 20 do século XIX, intitulavam-se pontos de vista.
«A realidade nunca é clara, é sempre contraditória (…). A verdade está sempre escondida (caché). Há mil verdades. É uma questão de ponto de vista», diz Haneke. Na televisão, ao invés do cinema, é o ponto de mira.
(televisão) Imagem de imagens. Imagem-coisa: pretensão de objectividade, de verdade, que é sempre uma suposição, é sempre um ponto de vista, mas neste caso tido como o ponto de vista dominante. Museu do acidente (Virilio), museu do real (Godard), e para Rosselini, a televisão poderia vir a ter um futuro mais comprometido e didáctico do que aquilo em que se tornou. A televisão é onde cabe tudo e não (sobre)vive nada, uma espécie de cemitério, no sentido que dava Jean Dubuffet ao museu: aquele lugar onde vamos para visitar uma coisa morta. É nesse mundo dos mortos que vivem as imagens da televisão, onde deixaram de existir. As imagens televisivas são anticorpos, criaram as suas próprias defesas contra aquilo que pretendem reproduzir: uma verdade. Sentimos na actual institucionalização e privatização iconográfica o indício de um completo domínio da percepção, contrário à possibilidade de um campo aberto a experiências e conhecimento. A televisão é a janela através da qual nada se pode ver.
(entre) Na dialéctica campo/contra–campo o espaço intermédio deixa de existir. A lei matemática dos 180º aniquila o imaginário, igualando as partes (Godard em Notre Musique falava precisamente desta figura retórica que o cinema clássico instituiu e que hoje ainda se mantém). A fotografia é o que existe entre as coisas: entre um momento passado e outro actualizado, tornado presente pela memória. Sem a memória as imagens não são imagens (matéria de uma realidade), é ela que activa um sentido da visão a posteriori. O movimento proporciona uma alma às imagens mortas, estáticas. Por imperceptível que seja, é através do movimento que a imagem recupera a sua alma. Por alguns instantes a imagem é animada. Assim, no drama do intervalo, a questão torna-se sensível: animar o que está morto, colocar o movimento entre dois mundos, o dos vivos e o dos mortos. Campo e contra–campo.
(fogo) «Fazer cinema é escrever numa folha de papel que arde». Esta frase de Pasolini diz-nos muito sobre essa forma de fazer cinema que pretende negociar com o transitório, com o fugaz, sem contudo deixar de o preservar. É a impermanência das formas que o filme projecta, e é aí que reside o seu grande paradoxo, a saber, nas formas que invariavelmente aparecem, desaparecem para voltarem a aparecer no ecrã. Em (nostalgia) de Hollis Frampton (1971), esta frase faz-se sentir com maior intensidade e complexidade. A dessincronia entre a voz em off e a imagem – um conjunto de fotografias que, uma a uma, ardem até as cinzas –, coloca estes dois elementos em constante confronto, dando lugar a um diálogo desviado, mas sempre atento.
No flickerfilm do cinema experimental americano só resta a percepção, no seu limite como tal. Grande parte dos cinemas experimentais são exercícios de percepção: pretendem situar o espectador no centro da experiência, como charneira entre o dispositivo da imagem e a imagem.
(morte) «O cinema prolonga a morte», escrevia Glauber Rocha. A imagem é a interrupção que permite o retorno, o eterno retorno que se mostra sempre diferente, sempre outro. É um fragmento da realidade que deixa de ser real, e passa a ser outra coisa (uma coisa outra, distanciada, e quase equívoca). A matéria perece com o tempo, que transforma, altera, abandona, descaracteriza, ou pelo menos impõe uma caracterização diferente às coisas, e às pessoas. A imagem interrompe o tempo, expande-o infinitamente para além do humano. A imagem não é humana, torna-se humana aos olhos do homem. A verdadeira imagem (Vera Icona) é uma imagem de morte.
Arrebato (1979) de Iván Zulueta e Camera (2000) de David Cronenberg: ressurreição das formas em outras formas (não será isso, afinal, o cinema?). Um rectângulo de luz projectado na escuridão, e nós, meros espectadores, situados entre a luz e a sombra.
(tempos mortos) O conceito de tempo é um artifício criado pelo homem, e como tal, deixa de existir quando deixamos de pensar nele, sentimo-lo como um fluxo natural e não como uma sucessão de intervalos invariáveis. O filme tem uma textura existencial própria, existe por si só, fora do tempo, como uma espécie de memória incrustada, apesar de poder ser “lido” (e actualizado) de múltiplas maneiras, em diferentes épocas. A modernidade fílmica – que instaurou, entre outras coisas, a durabilidade da não-acção, a visibilidade narrativa e a deriva pelos espaços físicos – também protagonizou rupturas irreversíveis, através do gesto fundador de colocar em questão as próprias estruturas narrativas, transformando-as em estruturas de reflexão.
(fragmentos) Uma película é composta por fragmentos, ou melhor, é um todo formado por um número de fragmentos: cada imagem fixa é um filme em potência, antecipa um movimento que está lá, implícito, e que espera por nós.
Para Walter Benjamin a História é fragmentária, lacunar, e escapa a um entendimento puramente cronológico de causa e efeito. Também para Godard a História adquire uma pluralidade de significados, é feita de histórias, de momentos, de sinestesias, entre elementos visuais, textuais e sonoros. As Histoire(s) du cinéma (1988-1998) deixam transparecer essa qualidade mental do audiovisual (a cosa mentale que falava Leonardo Da Vinci em relação à pintura, também ela presente nas Histoire(s)). O cinema é entendido, na sua globalidade, como pensamento, e as Histoire(s) fazem parte de esse longo monólogo interior que Godard partilha connosco, assente em uma forma associativa, dialéctica, de falar do Cinema e, consequentemente, da História. A dificuldade residiria em criar uma unidade dentro de esse universo fraccionado, irregular, que Godard traduz brilhantemente em uma visão múltipla (fazendo jus ao sonho deleuziano), enciclopédica, que Italo Calvino já adivinhara numa das suas seis propostas para o próximo milénio dedicada precisamente à multiplicidade.
(escada) É um objecto que estipula relações, diálogos, separações, acesso ao desconhecido ou ao demasiado familiar, a outros mundos dentro do mundo. Serve para subir mais alto ou para descer às profundidades mais sórdidas. Mas sobretudo serve de elo que enredeia as complicadas relações humanas (demasiado humanas!), como nos filmes de John Cassavetes.
(visões) Imagem, imaginação e magia estabelecem um elo de ligação muito frágil. Visões [de um cinema que confere aparência à maginação] demoníacas (Murnau, Lang, Christiansen); perceptivas (Brakhage, Kubelka, Sharits); poético-sensoriais (Buñuel, Polanski, Fellini, Deren, Anger); vampíricas (Corman, Zulueta); orgânicas mutantes (Cronenberg); transcendentais (Dreyer, Tarkovsky, Bresson); líricas (Garrel, Jarman); ontológicas (Tarr, Van Sant, Kiarostami); …
(comboio) Por alguma misteriosa razão o cinema nasceu com esse símbolo por excelência da industrialização e da expansão modernas que foi o comboio. De Lumière a Jarmusch, passando por Ozu, Hitchcock, Porter, Keaton, Medvedkin ou Vertov, a presença de esse grande mamífero de metal e fumo, orquestrou um porvir (quase) sem horizontes intransponíveis. E o que seria de um clássico western americano sem essa marca de progresso mutilando a paisagem?
(imagens) Hoje em dia todos somos produtores de imagens. Na tão esperada democratização dos meios existe uma questão paradoxal: como distinguir, separar ou tornar autónoma uma única imagem do emaranhado de imagens que existem, imagens de imagens? Somos totalmente invadidos pelas mesmas iconografias que fabricamos.
Ainda não foi superado o estigma moderno da repetição. Por essa razão, Marcel Duchamp estabeleceu um limite de readymades por ano, e mais tarde acabou por abandonar totalmente a sua produção. O perigo da repetição, como já pressentira o próprio Duchamp, é o de cair num abismo profundo do qual será impossível sair. Por vezes sentimos que o mundo contemporâneo é um lago com água estagnada, dentro do qual nadam peixes nado-mortos.
(pensamento) Poder-se-ia afirmar que o movimento gera pensamento. A realidade é também ela ficção, porque é só através da ficção que pensamos melhor a realidade, quando não a controlamos, mas alguém fá-lo por nós. O pensamento não pode estar ausente do cinema, como não está da pintura (Hubert Damisch, A origem da perspectiva). O cinema é uma forma de escrita, e a escrita uma forma de pensamento. Um meio de formar e de transformar (transfigurar) o pensamento.
(fantasmagoria) Todo filme é cinema de animação: o ecrã é um fantasma subitamente animado por um dispositivo de movimento. Pensamos na alegoria da caverna de Platão, a projecção das sombras no escuro, sendo o filme a ilusão, a encarnação do irreal, um simulacro da realidade que pretende ultrapassar. A projecção não mostra, apenas sintetiza um momento. Os fantasmas do caligarismo alemão; ou do neorrealismo italiano (bem mais verídicos); os fantasmas acelerantes do futurismo: o olho mecânico que vê mais e melhor que o olho humano (Vertov & Comp.); ou o olho artificial que obriga a ver a desumanidade que o olhar do homem causa: A Clockwork Orange (Standley Kubrick, 1971). A ilusão, em muitos casos, é destapada, deixa de ser ilusão para se transformar em real dentro da ficção: no filme O Feitiçeiro de Oz (1939) de Victor Fleming e em Mabuse (1931) de Fritz Lang, o próprio dispositivo da ilusão, o mecanismo que produz uma impressão de real, é subitamente revelado. No primeiro exemplo, por detrás da cortina existe alguém que simula a voz de um ser omnipresente; enquanto que no segundo exemplo, por detrás da cortina só encontramos uma máquina que reproduz a voz de um suposto ser real. A gravação é um outro eu sem alma, e sem órgãos. Aquilo que vemos e ouvimos através de uma gravação é uma reencarnação artificial de um passado mais remoto ou mais presente, mas que já deixou de existir. Um corpo já sem carne continua vivo no ecrã.
Os fantasmas são também essas criaturas que vivem num limbo, entre a morte já consumada e a esperança de vida eterna: o Nosferatu (1922) de Murnau; as personagens em The invention of Dr. Morel (1999) de David Lamelas, que habitam um espaço-tempo suspenso, simultâneo, deformado; ou os espectros de L’année dernière à Marienbad (1962), de Alain Resnais, presas de uma realidade última, hermética, num universo de zombies sofisticados e intelectualizados. Os fantasmas estão feitos para nos parecer (mesmo sendo grotescos), para nos deixar participar de um futuro de incerteza e dor. São eles os monstros que criamos para exorcizarmos os nossos próprios monstros.
(caminhar) O pensamento e o caminhar fazem parte um do outro como o corpo da alma. Vermos alguém a caminhar no ecrã é sermos confrontados com uma evidência forçosamente cruel: nós, como espectadores, não nos podemos mover do nosso assento, somos “obrigados” a ver as imagens em movimento, permanecendo estáticos. Existe no cinema uma ligação fundamental e verdadeiramente crucial entre a quietude e o movimento.
(silêncio) Um som sobre uma imagem fixa assume a função de movimento. O poder de abstracção será então maior. O silêncio é uma espera, um retorno, uma despedida, um sentimento, ou um pedaço de coração arrancado do corpo.
«Assegura-te de ter esgotado tudo o que se comunica pela imobilidade e o silêncio» (Bresson: Notas sobre o cinematógrafo).
(ícarus) Em um conhecido poema de W. H. Auden, onde refere o quadro de Bruegel, O Velho, intitulado Paisagem com queda de Ícaro, lemos o seguinte fragmento: In Breughel’s Icarus, for instance: how everything turns away // Quite leisurely from the disaster; the ploughman may // Have heard the splash, the forsaken cry, // But for him it was not an important failure (Musée des Beaux Arts). Esta passagem do poema de Auden deixa plasmada uma evidência sombria, a presença serena do quotidiano num momento tão desconcertantemente trágico como este. O centro da imagem – no quadro de Bruegel –, é dominado pelo olhar que uma personagem lança para fora do quadro, num plano exterior e enigmático porque fica à mercê da imaginação do observador. É ele que completa a cena, que lhe confere uma continuidade para além das barreiras físicas da pintura, e isso traduz-se num olhar intermédio, pausado, assente em um elo desconhecido. E essa figura que sobrevive à queda no filme The Man Who Fell to Earth, de Nicolas Roeg (1976), onde o protagonista, interpretado por David Bowie, se identifica claramente com essa representação de fracasso e de perda, abandonado num mundo rotineiro e quase afável, mas que o persegue e o captura como um animal indefeso.
O movimento é sempre queda, desastre, escrita demorada, concentrada e fugidia. O artista holandês Bas Jan Ader filmou, nos anos 70, diversas quedas em celulóide. Um tema que ele o tornou seu, como uma forma de equacionar uma ideia precisa com um instante tão imprevisível quão rápido. Há na queda um momento de resistência, de interrupção, de extrema fragilidade no interior do quotidiano (como podemos claramente comprovar nos seus filmes).
(ariel) A imagem daquele braço de manequim que desliza através da roupa depois de um forte golpe na vitrina, é uma daquelas imagens de uma beleza sinistra, que se transforma em algo sobrenatural, como que vinda do nada. A presença de Bresson respira neste filme (e em muitos de Kaurismäki), em cada plano, em cada enquadramento, em cada imagem, e que possui a capacidade de fazer do quotidiano uma fonte inesgotável de mistério, extraindo do mundo caótico, fragmentário, uma matéria humana rigorosa e completa.
(deus) Um: João de Deus, vulgo Max Monteiro, vulgo Nosferatu. Uma frase: «cada vez gosto mais de menos filmes». Recordações de um quarto distante: Buster Keaton num filme-olho para quem o olhar significa uma (vã) tentativa de escapar ao inevitável: aquilo que nos olha… somos nós.
(la lumière du réel) Realidade e ficção, jamais se podem separar. A realidade representa a pele, os poros, ou seja, o exterior; enquanto que a ficção são os órgãos, o esqueleto, os vasos sanguíneos, isto é, o interior. A realidade é a voz. A ficção é a mente. As duas encontram-se, diluem-se uma na outra, originando uma nova percepção das coisas.
Jean Eustache alertou-nos: «Mais un cadavre filmé est toujours un cadavre de fiction. (…) Car le cinéma est une image et ne peut en aucun cas être la réalité. Alors quand on dit cinéma du réel… Le réel, au cinéma, est toujours fictif».
A câmara não garante a verdade do mundo, descortina, antes, a consistência ambígua da nossa realidade.
(vazio) Sair de um filme é experimentar uma sensação de vazio. Da mesma forma sentimos o final do The Circus (1928), de Chaplin. Ao acabar de ver o filme, é uma impressão simultaneamente inquietante e esperançadora, ao mesmo tempo reconfortante e aterradora, que nos invade. Quando tudo deixa de existir, quando a ilusão termina e temos de enfrentar o exterior, quando voltamos as costas a esse mundo inventado, artificial, ele converte-se em uma mancha que permanece impregnada no real, uma poeira invisível que se espalha e que tudo envolve. «O que é a imagem fílmica? – interrogava-se Roland Barthes – Uma armadilha». É uma perfeita armadilha que reflecte a nossa relação incerta com o real através da ficção: porque fazemos sempre parte de uma realidade que revela ficção, ou seja, uma subjectivização constante sobre as coisas; e uma ficção que requer realismo, através da verosimilhança e de uma certa empatia com respeito ao que está a representar. Esse vazio que sentimos é fruto da sensação irrecuperável da primeira vez, do acto inaugural de ver e de ouvir um filme que nunca tínhamos visto antes, como se essa fosse a nossa estreia no cinema. Cada filme (que por qualquer razão nos marca, atenção!) é um baptismo cinematográfico.
(futuro) O futuro do cinema é não ter futuro. Uma arte que nasceu sem futuro, e que descreve o passado e o presente como fantasmas e fantasmagorias animadas, não tem tempo, ou vive um tempo anacrónico, num advir incerto e prolongado como um sonho. Daí que o cinematógrafo não seja uma consequência histórica cronológica (pensamos novamente em Benjamin e em Godard), mesmo tendo uma raiz técnica determinada e localizada. Não ter futuro é ser futuro, pois o futuro é a memória do que ainda está por acontecer.
(royaume des ombres) Assim descreveu Máximo Gorki o cinematógrafo dos irmãos Lumière, em 1896, depois de uma das suas primeiras sessões. As sombras de um reino que começou com a decadência: a do século XX, as sombras fustigadas e amortalhadas pela História da destruição.
(natureza-morta) «Para o cinema, tudo se torna uma imensa natureza-morta», disse Federico Fellini numa famosa entrevista a Giovanni Grazzini. A natureza-morta é auto-explicativa, não precisa demonstrar aquilo que reproduz: uma continuidade desprotegida, um retorno esquecido, uma (in)consciência reveladora ou uma inconsistência prolongada.
O cinema teve, e continua a ter, sucessivas mortes… e todas elas fazem parte da sua própria natureza.
(abel e caim) A velha distinção de Godard entre cinema e vídeo. Video é igual a olhar (ou colocar a câmara e gravar, o que é a mesma coisa). O filme de Kiarostami sobre o mestre Ozu (Five, 2003), contando apenas com cinco planos-sequência filmados em vídeo. Ou Ten (2002), também ele composto por dez planos fixos no interior (claustrofóbico!) de um automóvel, este último um leitmotif utilizado por Kiarostami em filmes anteriores. Chris Marker, esse autor sem rosto, quase que se deixa filmar ele próprio por inteiro num espelho com uma handycam sony em Le Tombeau d’Alexandre (1992), colocando em evidência a permeabilidade deste meio. Como seria, ou será, o cinema e o vídeo sem uma câmara? Poderemos vir a prescindir dela, dessa mediadora tão eficaz quão sorrateira? Recentemente, Lars Von Trier usou um dispositivo que determinava, através de um software, enquadramentos arbitrários (algo similar pretendia Michael Snow em La Région Centrale, em 1971, esse olhar vertiginoso e distanciado sobre o real). O homem da câmara de (re)filmar. O homem da câmara de pensar.
Abel e Caim: cinema de massas versus cinema individualista; o espectáculo colectivo (integrado) versus o olhar intimista (isolado). O vídeo ocupa o lugar do home-cinema experimental, mas também põe a hipótese de uma forma de falar das imagens que existem: o ensaio audiovisual.
(demora) em vidro. Demora em celulóide. Demora em vídeo. Não ver, não olhar, ou, pelo contrário, ver absolutamente tudo. A fotografia regista o mundo. O cinema regista o mundo e a fotografia. Histórias em demora. Tempo embalsamado (Bazin), expandido (contemporaneidade), deslocado, cego (o ponto nu, ou seja, esse algo não totalmente definido mas exposto à virtude dos tempos), e talvez algum dia cicatrizado. Contra[o]tempo, só a projecção, a ilusão–caverna, um pouco ingénua, como advertira Platão, ligeiramente absurda, mas com todo o risco de podermos vir a existir sem ela.
Narciso ou Le cinéma selon Broodthaers. O olho–máquina–espelho da condição humana: olhar-se a si mesmo como um estado indeterminado de delírio (essa flor branca da utopia).
(interdito) A partir de aqui fica por conta e risco do imaginário de cada um!
(…)
imagens:
· Pickpocket, Robert Bresson, 1959 · Onde jaz o teu sorriso?, Pedro Costa, 2001 · Stranger Than Paradise, Jim Jarmusch, 1984 · Blow Up, Michelangelo Antonioni, 1966 · Blow Job, Andy Warhol, 1964 · (nostalgia), Hollis Frampton, 1971 · Camera, David Cronenberg, 2000 · Histoire(s) du Cinéma, Jean-Luc Godard, 1988–98 · A Woman under the influence, John Cassavetes, 1974 • Faces, John Cassavetes, 1968 • The Killing of a Chinese Bookie, John Cassavetes, 1976 • Nosferatu, Friedrisch Murnau, 1922 · The Invention of Dr. Morel, David Lamelas, 1999 · Mystery Train, Jim Jarmusch, 1989 · La Cicatrice Interieure, Philippe Garrel, 1971 · Gerry, Gus Van Sant, 2003 · Paisagem com queda de Ícaro, Pieter Bruegel, O Velho, 1558 · Fall 1, Bas Jan Ader, Los Angeles, 1970 · Ariel, Aki Kaurismäki, 1988 · Film, Samuel Beckett/Alan Scheider, 1964 · Vai e Vem, João César Monteiro, 1995 · The Circus, Charles Chaplin, 1928 · Dreams, Akira Kurosawa, 1990 · Paranoid Park, Gus Van Sant, 2007 · La Jetée, Chris Marker, 1962 · Five, Abbas Kiarostami, 2003 · Citizen Kane, Orson Welles, 1941 ·