< Textos dispersos >

  • Belladonna – Entre documento e arte

    O crítico de arte norte-americano Hal Foster identificava, no influente livro de 1997 intitulado The Return of the Real, uma viragem etnográfica na arte contemporânea, encontrando um fio condutor que liga o minimalismo, como eixo transgressor, ao site-specific, enquanto paradigma metodológico, passando pelo pós-minimalismo enquanto iniciador de um discurso contextual. Foster situava, deste modo, a arte contemporânea num “campo expandido da cultura”, onde o artista assume o papel de etnólogo. Requere-se do espetador, neste novo enquadramento, alguém que quando entra nos espaços da arte não deixa para trás o seu mundo, nem os seus referentes culturais e sociais, que são, precisamente, os que o artista se compromete a convocar.

    Podemos dizer que o trabalho de Martinho Mendes se insere nesta abordagem, que por sua vez se prende com o especial interesse que mantém pela etnobotânica em estreita ligação com a sua prática artística, de tal modo que deixar de existir uma fronteira clara entre as duas. As suas inúmeras e continuadas viagens dentro dos limites circunscritos da ilha da Madeira, lugar onde vive e trabalha, permitem-lhe desenhar uma constelação de referências provenientes da flora local e dos costumes enraizados na cultura madeirense. Cabe acrescentar, ainda, um forte diálogo com a prática de investigação, habitual na sua metodologia de trabalho, que envolve uma recolha atenta dos diversos e singulares fenómenos locais. São estes aspetos endémicos que o fazem pertencer a um grupo de artistas, por assim dizer, que encontram nos elementos vernaculares um imaginário vivo ao alcance da arte, como fontes simbólicas da relação do homem com o seu entorno. Os tapetes de flores, o bordado, as festividades religiosas, entre outros, transformam-se em objetos estéticos em si mesmos e passam a integrar, de forma natural, mas muito consciente, os projetos artísticos de Martinho Mendes.

    Com base no cruzamento entre antropologia, etnobotânica e arte contemporânea nasce Belladonna, um dos seus recentes projetos. Belladonna não se refere a uma diva do cinema ou da música, como se poderia supor. É uma flor: Amaryllis belladonna (açucena em linguagem popular, de herança mitológica). Uma simples flor branca rosada, planta herbácea, bolbosa, nativa da África do Sul, que habita na Madeira e se estende pela ilha de forma muito ampla, ocupando zonas com caraterísticas orográficas e geoclimáticas muito diversas, mas sobretudo em zonas próximas à montanha. O interessante desta flor, o que a faz ser distinta de outras é que, apesar de não ser endémica, foi-se naturalizando ao ponto de ser usada, há mais de duzentos anos, em duas festas religiosas, embora secularizadas, em pontos diferentes da ilha (Festa de Nossa Senhora do Bom Despacho, na freguesia do Campanário, e festa de Nossa Senhora do Livramento, na freguesia da Ponta do Sol). Estas duas celebrações foram recentemente reavivadas, em grande parte pela presença de emigrantes, maioritariamente da Venezuela, que voltaram definitivamente ou que visitam, em cada verão, os seus familiares.

    O trabalho em vídeo Belladonna traduz em imagens e sons as relações possíveis com o património imaterial fecundado pelos costumes e pela paisagem, ao mesmo tempo orquestrado por uma montagem que se assume como uma manta de retalhos, fragmentos dispersos a partir de registos realizados pelo artista em diversas ocasiões, entre 2010 e 2015. O diálogo é ao mesmo tempo harmonioso e tenso, evidenciando o vínculo marcante entre tradição e modernidade, entre proximidade e distância, entre paisagem natural e paisagem humanizada, entre o sagrado e o profano.

    Deste tecido de cores, de vestígios de sons, de música, de vozes, de luzes, percebemos a fisionomia de um lugar, os rasgos indeléveis de um ritual anacrónico. É o momento preciso no qual o quotidiano se confronta, inevitavelmente, com o território espiritual.

                   Vítor Magalhães (Texto para a exposição “Do Bom Despacho ao Livramento: a açucena no Culto Mariano”, com curadoria de Martinho Mendes, Museu Etnográfico da Madeira, 21 de Setembro a 7 de Dezembro de 2018).

     

    Luis Camnitzer, Fragment of a Cloud, 1967

    Poéticas do fragmento e discursos fragmentários: alguns apontamentos

    Só quem soubesse contemplar o próprio passado como fruto da coacção e da necessidade seria capaz de, em cada momento presente, o valorizar ao máximo para si. Porque aquilo que se viveu é, na melhor das hipóteses, comparável a uma bela escultura à qual, no transporte, quebraram todos os membros, e nada mais oferece que o bloco precioso a partir do qual terá de se esculpir a forma do futuro. (Benjamin, p. 74)

     

    • A noção de fragmento é uma noção paradoxal, aporética.

    • O fragmento tem uma energia especial, uma rigidez intrínseca à sua circunstância.

    • A história da evolução do homem é uma história de fragmentos. A evolução da humanidade é feita de fragmentos revestidos de camadas sobre novas camadas de tempo. Aliás, a história é justamente isso, a prática de gerar grandes narrativas a partir de fragmentos, muitas vezes aparentemente desconexos, operacionando-os e até instrumentalizando-os. A relação do homem com as coisas delimita espaços e sujeita-os a diversas concepções temporais. O objecto dá forma à passagem do tempo, como muito bem compreendeu George Kubler (The Shape of Time).

    • Fragmento não é pormenor. No segundo, o regresso ao todo faz-se sem qualquer prejuízo para ambos; no primeiro é apenas assegurado um retorno parcial. A irreverência do fragmento fá-lo incompatível com a unidade. Não é apenas uma parte retirada de um todo, ou melhor, é uma parte, sobrevivente, de um todo que deixou de existir, que não existiu ou então que nunca existirá. Como escreve Maurice Blanchot em L’ecriture du désastre: «os fragmentos inscrevem-se como separações não cumpridas» (p. 55).

    • Talvez tenha sido Friedrich Nietzsche quem primeiro vocacionou a sua escrita para o exercício do pensamento fragmentário, se bem que a procura de uma origem seja uma tarefa problemática, senão mesmo inútil (a eterna disputa entre o ovo e a galinha e a hipótese, difícil de imaginarmos, da criação de vida a partir do nada).

    A escrita fragmentária estende-se pela modernidade como um princípio livre, ensaístico, impulsivo e não sistemático de olhar o mundo e o homem que habita esse mundo: de Montaigne e Pascal a Benjamin e Cioran, passando por Nietzsche, o romantismo alemão ou Wittgenstein, entre outros. Naturalmente, devemos retroceder ainda mais no tempo, pelo menos até Marco Aurélio, ao conceber o pensamento em potência por entre fragmentos. Nestes casos, e como mostra João Barrento em O Género Intranquilo, a anatomia do fragmento coincide, no que respeita ao discurso, à do aforismo, uma prática moderna por antonomásia.

    • A Collage/Montage enquanto método adoptado pelas vanguardas históricas. Na segunda fase —sintética— do cubismo, Georges Braque, Pablo Picasso e Juan Gris deslocam alguns vestígios do real para a superfície plana da tela, o que para alguns representou uma completa heresia relativa à pintura.

    A noção de montagem implica, forçosamente, a de fragmento, porque também ela é uma construção de fragmentos: a fotomontagem dadaísta era precisamente isso, a construção de um discurso a partir de realidades fragmentadas, heterogéneas.

    O cinema é igualmente feito de bocados, de planos uns a seguir aos outros; de imagens fixas animadas por um dispositivo óptico-mecânico. Como a fotografia, o cinema mostra uma sucessão de fantasmas e de fragmentos de realidades que desapareceram e que jamais serão as mesmas.

    • Etimologicamente, e como aponta Omar Calabrese (A Idade Neobarroca), o vocábulo “fragmento” deriva do latim frangere (na verdade frangere é a raiz de fragmentum) no sentido de “quebrar”, “romper”. Nesta lógica, a sua relação com o todo resulta de uma ausência: «o todo está in absentia» (p. 88). E é precisamente aí que deverá permanecer para que o fragmento se constitua fragmento. Camila Elias, por outro lado, fala do carácter plural e múltiplo do fragmento: «Um dos aspectos da raiz frangere assenta no facto de apontar para uma necessária pluralidade de fragmentos, já que é logicamente impossível quebrar um todo num só fragmento» (p. 1).

    • Quão estranhos são aqueles objectos (chávenas, jarras, bibelôs, etc.) que quando partidos e reconstruídos, coladas as diversas peças umas às outras, não voltam a ser iguais. O fragmento impõe a sua presença, estabelecendo uma inconciliável ruptura com o todo. Frankenstein ou o moderno Prometeu: o paradigma do não-humano, criado a partir de restos de cadáveres, a quem é oferecida uma espécie de vida incompleta.

    A rejeição do órgão fraccionado intensifica o temperamento transgressor do fragmento ao não deixar-se integrar numa totalidade. Sabemos como a medicina lutou e ainda luta por essa assimilação contraditória.

    • O fragmento é sempre um objecto inquieto, desconcertante. Porque indicia uma alteridade (a diferença do mesmo), um deslocamento, uma transformação. É um objecto concomitantemente descontextualizante e descontextualizador. Mas precisamente por essa natureza sem lugar, sem raiz, digamos, presta-se a uma configuração quase imaginária. Podemos dizer que actua, no fundo, como um objecto emancipado pois terá infligido no todo uma modificação, seja ela profunda ou subtil. A natureza fragmentária de um determinado objecto torna-o um signo incompleto, ou pelo menos resistente a tornar-se completo, no sentido não só de uma realidade acabada, mas também de comprovar uma suficiência existencial. Ao mesmo tempo que se reveste de paradoxo afirma-se como resto de um nada, ou precisamente por essa razão; assume-se como um resto que se “emancipou”. De modo forçado, talvez seja necessário acrescentar.

    A cauda de uma lagartixa quando arrancada do resto do corpo tem uma curta semi-existência repleta de movimentos espasmódicos. É uma separação definitiva que decreta um não retorno ao corpo, ao estar-vivo. A cauda, o pedaço de corpo animal que deixou de ser corpo, esforça-se em dar continuidade a um movimento que perdeu o seu propósito de vida.

    • Calabrese dá um exemplo revelador da relação esquizofrénica entre o todo e o fragmento quando sugere que «uma estátua a que falta apenas o dedo mínimo do pé esquerdo não é um fragmento, mas sim um total com uma lacuna» (p. 89). Encontrar um dedo sem saber a que sítio pertence significaria descobrir não uma falha, como no exemplo que dá Calabrese, mas um fragmento, um vestígio provocador de uma procura. Como a orelha que a personagem masculina do filme Blue Velvet (1986), de David Lynch, encontra num terreno baldio: uma forma sem figura, fragmento humano que inicia a narrativa; mote desconcertante, inexplicável, que nos irá transportar para aquele universo peculiar de Lynch e das suas personagens.

    • Por fim, reportarmo-nos à figura do detective, destacando-se como aquele que estrutura a sua investigação com base nas diferentes peças, pedaços, fragmentos, vestígios, de algo que se vai construindo pouco a pouco. Ele é um verdadeiro arqueólogo do quotidiano. O mundo, para ele, é uma realidade desmembrada, um patchwork incompleto, um puzzle à partida impossível.

    • A orelha de Blue Velvet —como a orelha, ausente, de Vincent van Gogh— é exemplar enquanto condição paradoxal da coisa que passa a existir sem uma entidade própria, sem estar ancorada a um sistema ou totalidade orgânica. Essa meia-realidade, entre o orgânico e o inorgânico, faz do fragmento um remanescente trágico.

     

    Referências bibliográficas:

    Barrento, João (2010). O Género Intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim.

    Benjamin, Walter (1992). Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900. Lisboa: Relógio d’Água. [Einbahnstrasse, 1928]

    Blanchot, Maurice (1990). La escritura del desastre. Caracas: Monte Avila Editores. [L’écriture du desastre, 1983]

    Calabrese, Omar (1988). A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70. [L’Etá Neobarroca, 1987]

    Elias, Camelia (2004). The Fragment: Towards a History and Poetics of a Performative Genre. Bern: Peter Lang AG, European Academic Publishers.

    Kubler, George (2004). A Forma do Tempo. Observações sobre a história dos objectos. Lisboa: Vega. [The Shape of Time. Remarks on the history of things, 1962]

    Vítor Magalhães (Texto para “Do Fragmento e do Desenho”, exposição anual do serviço educativo do Museu de Arte Sacra do Funchal, 18 de Maio de 2015, dia internacional dos Museus. Curadoria de Martinho Mendes e Filipa Venâncio)

     

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    À temperatura do movimento

    O contemporâneo é alguém que fixa o olhar no seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas o seu escuro. Todos os tempos são, para quem experimenta a sua contemporaneidade, tempos obscuros. O contemporâneo é, precisamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando o aparo na treva do presente.

         Giorgio Agamben, O Que É o Contemporâneo?

     

    Na altura em que estávamos a organizar algumas questões relacionadas com a exposição, surgiu-nos a ideia, um pouco dadá, de A temperatura do movimento como possível título para a exposição. Apesar de ter sido abandonada logo de início, não sem deixar de estar estranhamente adequada às ideias que cada um de nós pensava realizar, ainda assim permaneceu, latente, e alheia ao título escolhido.

    A temperatura do movimento não é constante, como a temperatura do ar, ou de um corpo, esta depende das condições climatéricas, e poderá também depender, no caso do corpo humano, do grau de excitação. A temperatura é o elemento modificador, que absorve, dilata, faz transpirar ou secar o ambiente e os corpos a ele sujeitos.

    Por outro lado, existe a deslocação dos espectadores nas salas de uma galeria, de um museu, ou em lugares públicos onde se encontram obras de arte. Qualquer percurso implica criar uma proximidade com o espaço ou lugar, com os objectos, e com as outras pessoas que nele se encontram; mas é, também, descobrir um ponto de vista, deparar-se com uma situação, muitas vezes improvável. Esse deambular pelo espaço físico determina uma temperatura específica, um estado, por assim dizer, de alteração física (e igualmente psicológica). Assim, cada movimento regula ou desregula uma dada temperatura no interior daquela que habita o lugar (pensemos, por exemplo, nos espaços da arte como termógrafos altamente controladores da actividade artística).

    Porém, falar de movimento é falar do seu oposto impossível: aquilo que está imóvel, estático. Embora a quietude seja apenas uma subtil aparência. O tempo avança, assim como as coisas se transformam, aprendemo-lo em físico-química: nada se perde, tudo se transforma (não esquecendo que também há uma perda de energia, que leva à entropia, ao desgaste e ao caos, que nós, humanos, procuramos constantemente, e talvez inutilmente, travar). A imagem é sempre fixa –mesmo quando “aparenta” movimento–, mas a vida não é. Existem os ciclos naturais, para nós de certa forma distantes e já quase indiferentes, mas que ajudaram a definir o próprio fluir da vivência quotidiana e que os povos ancestrais entenderam e, com sapiência, utilizaram.

    Tudo se transforma. Inclusive uma imagem fixa altera as suas cores, perde brilho, pormenores; e um ecrã de computador, com o uso, perde a intensidade e as cores originais. Para não falar de que numa imagem se modificam os discursos, conforme o contacto com outras imagens, outros comentários, outros olhares. Deste modo, a luz tem essa outra face (como a lua), uma face escura, onde as trevas mostram aquilo que tem o poder de ocultar, ao contrário da luz que esconde aquilo que deveria mostrar (a luz cega!). Por detrás do optimismo positivista em plena época das luzes, no século XVIII, escondiam-se as chaves de um futuro ancorado na máquina, na produtividade, na rentabilidade; e hoje, na globalidade da luz virtual, tão transparente quão espessa e opaca.

    A sensibilidade contemporânea é, na perspectiva de Agamben, a de antever a escuridão da sua época. Perceber o escuro seria compreender as lacunas da luz, adentrar-se no domínio obscuro da temporalidade idiossincrásica da nossa contemporaneidade. A dificuldade de ser do contemporâneo é ser simultâneo à sua condição “transitável” (em palavras de Delfim Sardo), um fluxo de fluxos. Numa sociedade planetária, a noção de fluxo assume um papel cada vez mais eminente, até a náusea.

    Se hoje o consumo é a única ideologia que impera (segundo Boris Groys) num contexto, decadente, de capitalismo globalizado, uma defesa possível seria, não a de arrojar luz aos olhos com o intuito de cegar ou de anular as trevas, mas, pelo contrário, e como sugere Agamben, com a pretensão de fazer ver (e entender) a escuridade que ela produz. Foi sempre esse o grande paradoxo: para que haja projecção, luz, terá de existir escuro. Até mesmo com os projectores mais sofisticados, ou com monitores que invadem não só o espaço privado, mas o público, sentimos a necessidade de escurecer tudo à volta, de construir uma carapaça isolada que intensifique a ilusão.

    Contudo, o efeito ilusório é, em Exposição prolongada à luz, cesurado pelo dispositivo das imagens, alternando a materialidade imagética (e objectual) com a imaterialidade lumínica, potenciais activadores do pensamento. São indícios narrativos que expõem as gradações entre claridade e escuro, entre objecto e espectro, entre modernidade e obsolescência, camadas de tempo que se sobrepõem e que perturbam a ideia de tempo. Daqui resulta, também, outra condição contemporânea: a subversão do tempo imposto pelo ritmo natural do planeta.

    Será com base nestas estratificações temporais e materiais, que devemos equacionar as experiências aqui apresentadas, à luz, nunca melhor dito, das diferentes abordagens que tentam estruturar, fenomenologicamente, o contacto com a temperatura do movimento. Esta ideia de luz, consolida, de forma intangível, a diversidade das propostas que integram Exposição prolongada à luz, e que mostra bem como essa diversidade se relaciona –marcando, algumas vezes, a ambiguidade que lhe é intrínseca– com o espaço físico do museu, como espaço-signo da praxis contemporânea (também ela, finalmente, museificada). A possibilidade surge, neste contexto, da presença perceptiva, uma parte fundamental da experienciação da arte, em sentido amplo. Numa palavra: duração.

    Vítor Magalhães (texto para o folheto da exposição colectiva Exposição Prolongada à Luz, Museu de Arte Contemporânea do Funchal, de 5 de Novembro a 15 de Dezembro de 2010 – Ver Exposições e Projectos)

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    A minha retina é um planeta distante. Algumas reflexões acerca da visualidade

    Tudo aquilo em que se pode crer é uma imagem da verdade

    William Blake

     

    Não existem imagens. Falamos do último filme do artista e cineasta britânico Derek Jarman, quando em 1994, na fase terminal da sua doença, ficou cego. O azul electrizante, galvânico, foi a cor que Jarman começou a “sentir”. Um planeta distante, luminoso, mas sem corpos, imerso em vozes e sombras passageiras e confusas. O azul de um planeta distante, na mente de alguém que precisou dos olhos para construir imagens. Blue, dedicado a Yves Klein, é um filme sobre o HIV, sobre um vírus, ou seja, sobre “aquilo que não se pode ver”, em palavras do próprio Jarman. O ecrã, unicamente em tom de azul, assume o papel de mediador, entre a cegueira gradual e a vontade de retirar desse novo mundo um sem número de questões subjacentes à sua condição.

    A sensação de esquecimento resulta aterradora. Paliamos essa impressão e esse medo humano, com as imagens, com os sons ou com as palavras. A escrita, em todas as suas manifestações, é uma forma de adiar um processo sem retorno, o do desaparecimento inevitável das pessoas, das coisas e das ideias. A escrita é a “máquina” que organiza e formaliza a memória, embora esta última seja tremendamente ambígua e propensa a equívocos.

    Antes, a sociedade era dominada pela audição. Jacques Attali chamava a atenção, em Bruits (Essai sur l’économique politique de la musique), para o facto de o ruído significar uma resistência ao controlo da audição como principal veículo do discurso ideológico repressivo. Hoje assistimos à primazia da visualidade. Assim atestam os recentes estudos visuais, quando a globalização se faz através do olhar, e da imagem, ou melhor, da pluralidade e proliferação das imagens. Uma questão é-nos colocada: como podemos responder então a esse despotismo da visão? Com que mecanismos, e sobre que estrato conceptual e expressivo podemos construir novas imagens? Marte ainda está longe – ou qualquer outro planeta do nosso sistema solar–, apesar de significar, para Werner Herzog, um lugar onde possam existir imagens de uma lucidez e de uma pureza há muito perdidas aqui, na Terra. Há já algum tempo que o espaço quotidiano se instituiu como um campo de investigação profícuo, e a procura de novos espaços onde deixar marcas indeléveis de existência, uma mera fantasia colonizadora.

    Carlos Valente apropria-se do outro, que neste caso é o Hugo Olim. A obra existe em função do espaço físico e do imaginário daquele que se encontra na sala contígua, assente num contacto ou proximidade conceptual. É um olhar solitário e quase imperturbável que desafia o espectador. No cinema narrativo, o muito grande plano do rosto remete para um isolamento emocional, relacionando-o directamente com a pessoa que vê e que passa a sentir através da imagem. É um corpo fragmentado, um rosto que espelha a alma ou simplesmente um olhar que estrutura um diálogo (Jean Epstein escreveu que um plano pormenor do olho já não é o olho, é UM olho). Ponto de vista #8, de Carlos Valente, estabelece uma ponte entre as duas salas que definem DISTÂNCIA MÍNIMA, resultando ao mesmo tempo numa espécie de auto-retrato possível (consolidado noutros trabalhos anteriores) e um ponto de vista com respeito ao outro.

    «Se existe o princípio de realidade, existe o princípio de possibilidade» dizia-nos Robert Musil. Se existe o princípio de visibilidade, então também existirá o princípio de impossibilidade, sendo a impossibilidade o possível tornado invisível. Ou seja, quando já não conseguimos ver, não porque tenhamos ficado cegos, como Jarman, mas porque vemos demasiado, de tal forma nos sujeitamos a uma acumulação de lixo visual. O intervalo seria então, não a ausência de visão, mas um estado entre o visível e o invisível, um olhar cadenciado, expectante, como uma pausa na percepção. Como a que encontramos numa sequência de L’enfant secret, um filme de Philippe Garrel de 1979, onde o pestanejo de uma criança em grande plano coincide com a cintilação dos fotogramas projectados em velocidade lenta na moviola, posteriormente regrava- dos. O resultado é de uma fragilidade extrema: a de um momento em suspensão, onde o ruido dos fotogramas em sucessão, aquilo que normalmente não nos é perceptível, e que o cinema convencional esconde, permite uma espécie de micro-escrita em imagens em movimento, um intervalo que estipula uma diferença. É um piscar de olhos que o cinema reproduz: o espaço entre um fotograma e outro. A pequena faixa em negro no celulóide é o intervalo necessário para que um fotograma não se sobreponha ao outro no nosso cérebro, mas desfile num movimento fluido e aparentemente ininterrumpido. Trata-se do ilusionismo posto em prática pelo dispositivo das imagens em movimento. Esse intervalo existe em alguns dos objectos pré-cinemáticos como o fenaquistiscópio, o praxinoscópio ou o zootropo, onde através de uma série de orifícios nos é restituída a ideia de movimento.

    Quando fechamos os olhos, o mundo ainda existe? Esta foi a questão que um professor de filosofia um dia nos colocou na aula. Quando fechamos os olhos, as coisas podem ter uma existência ou uma aparência que ignoramos. O intervalo é o desconhecido, a penumbra, o espaço abstracto intermédio que, no caso de Carlos Valente e Hugo Olim, negocia um diálogo permanente –entre eles, e entre eles e o espectador– apesar de interrompido, nutrindo-se conscientemente dessa interrupção e desse tempo de espera, essa distância mínima, tanto nos sucessivos pestanejos da figura no primeiro caso, como nos breves impulsos visuais do ruído videográfico (provocado ou espontâneo) entre os negros absolutos, no segundo. Encontramo-nos num espaço de reflexão, de intimidade perceptiva, contidas num abrir e fechar de olhos. Uma tensão provocada por movimentos subtis, determinados pela lógica de um meio –o vídeo– que trabalha com o tempo como uma matéria imprescindível. (Não nos podemos esquecer que a palavra vídeo tem a sua origem no latin video, de videre, ou seja, o acto de ver)

    O ruído, tal como as ruínas, os sedimentos, são as sobras indesejadas, improdutivas, de um movimento, ou de uma transmissão, que aqui, no contexto de Interrupt de Hugo Olim, são apropriadas, reaproveitadas numa nova envoltura, minimalista e experimental. Porque é de apropriação que se trata. Porque a nossa visão (qualquer um dos nossos sentidos, no fundo) é uma forma de apropriação dos fenómenos do mundo. Para conhecê-los, entendê-los, moldá-los, ou simplesmente ignorá-los. Nesse aspecto ainda somos crianças, ainda vivemos num quase inocente desejo de tocar sem a consciência de que nos podemos ferir, sujar ou queimar.

    Um exemplo recuado no tempo desta sensibilidade minimalista e materialista seria o de Zen for film, de Nam June Paik, um filme em 16 milímetros de 1964. E recuando ainda um pouco mais, a 1920, a uma fotografia de Man Ray sobre um trabalho de Marcel Duchamp, L’Elevage de Poussière, sendo o pó um elemento aderente, transformador, e que é aceite pelo artista como uma proposição temporal e entrópica vinda da própria realidade. Em Zen for film, são os detritos que se acumulam no celulóide não sensibilizado, ou seja, sem imagens, que em cada projecção cria um universo de novos ruídos, e de pequenos movimentos que deles se originam, e que por sua vez se transformam no conteúdo e na essência do filme.

    “A minha retina é um planeta distante”, diz-nos uma voz-off em Blue. Poderíamos dizer que esse planeta distante é precisamente o lugar onde já não estamos, onde já não somos nós mas onde qualquer coisa permanece, uma espécie de cápsula do tempo (onde podemos encontrar todos os detritos: pó, bolor, cinza, …), como o misterioso planeta em Solaris ou a “zona” em Stalker –dois filmes de Andrei Tarkovsky– capazes de trazerem à superfície os desejos mais profundos. Lugares distantes que deixaram de ser lugares para se transformarem em fluxos criativos: pensamentos, intuições, sentimentos, … em estado puro.

    Vítor Magalhães (texto in catálogo Horizonte Móvel. Artes Plásticas na Madeira 1960-2008, Museu de Arte Contemporânea do Funchal, Funchal 500 anos/Catálogos, 2008, págs. 13-15)

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    Textos online:

    - Texto para a representação da ilha da Madeira no II Festival Internacional de Videoarte “Entre islas” de 2016 (http://www.festivalentreislas.com/belladonna-2015.html).

    - “Espacios de control y resistencia cultural”  (link).

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